Análise do artigo de Olavo de Carvalho
publicado na revista Verbum, números 1 e 2, julho e novembro de 2016,
1.
O que o autor diz.
O
autor é bastante descritivo, e por vêzes intercala o pensamento de outros
autores com o seu, de modo que nem sempre é fácil discernir se está de acordo
ou não. Sendo assim, procuraremos ser descritivos e literais nessa primeira
parte para que, ao procedermos à crítica na segunda parte, só atribuirmos a ele
o que realmente exprimiu como seu.
O professor Olavo de Carvalho começa se
alinhando com a distinção entre os dois universalismos, considerados high e low brow:
“O
esclarecimento é este: Não se deve confundir o “universalismo” paródico da Nova
Era e da URI com o universalismo high brow
da escola dita ‘tradicionalista” ou “perenialista” inspirada em René Guénon,
Frithjof Schuon, Ananda K. Coomaraswamy e seus continuadores.
É
verdade. São muito diferentes.” (Parte 1, pág. 33)
Note-se que o próprio autor insiste que a diferença é profunda,
diferença entre um “pastiche de sincretismos” e, de outro lado “(...)
construções intelectuais sofisticadas, uma compreensão profunda e organizada
dos símbolos religiosos e esotéricos de todas as tradições, um domínio cabal
das fontes reveladas [?!] e uma técnica comparatista que se aproxima, em
precisão, quase que de uma ciência exata” (parte 1, pág.34).
E
quando examinamos os efeitos do conhecimento desta diferença a nível do sujeito
individual, vemos que eles ultrapassam muito o de uma mera satisfação
intelectual pelo conhecimento natural de Deus:
“(...) a passagem ao tradicionalismo de Guénon e Schuon é um upgrade intelectual formidável (...)”
(parte 1, pág. 35). E segue citando um biógrafo de Guénon, sem desaprová-lo:
“Chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo contato
material que possa ajudá-lo em sua resistência interior, terá de encontrar em
si mesmo, e só nele mesmo, o meio de aderir firmemente, pelo centro de sua
existência, ao Senhor de toda Verdade” (Idem)
E
continua o autor, indicando o aumento de autoridade desse universalismo,
resultante de sua ligação com revelações imemoriais remontantes à Tradição
Primordial. Tudo isto leva à constatação da “convergência essencial das
doutrinas e símbolos das grandes tradições religiosas e espirituais (...)”
(idem).
Prossegue estabelecendo 3 pontos de diferenciação entre o falso
universalismo e os ensinamentos perenialistas:
1.
Integridade das
tradições: no verdadeiro universalismo ensinado pelos perenialistas, que se opõe
a qualquer sincretismo, embora apontem para uma mesma Realidade suprema.
2.
Seleção de materiais: onde se separa o
verdadeiro do contrafeito, sendo a ligação com a fonte primordial o critério.
Falta este critério no falso universalismo.
3.
O mais
importante: a transcendência, e não imanência desta unidade. A convergência se
faz pelo que o autor chama “concepções metafísicas”. Ele concorda com isto, mas
utiliza o condicional para falar da relação entre os exoterismos e o esoterismo
primordial que une.
E esta
linguagem menos clara nos remete ao último parágrafo da parte I: “Mas é aí que
começam os problemas”.
A
parte II então aborda a questão problemática da diferenciação entre esoterismo
e exoterismo: é a diferenciação vertical dentro de cada tradição (as quais
exprimem a diferenciação horizontal). Questão importante para a tese da unidade
transcendental das religiões. O “topo” tem que ser comum, superior e ponto de
encontro das tradições, mas como estas não podem fundir-se (como no ocultismo
vulgar sincretista), essa unidade deve ultrapassar o nível inferior e temporal,
historicamente condicionado.
Porém, explicitamente, somente o Islamismo apresenta tal distinção. E o
autor passa em revista outras tradições, a hinduísta, a cristã e a judaica, e
defende que a aplicação dessa distinção só pode ser sugestiva ou analógica. “Com
isso o edifício inteiro do “perenialismo” começa a balançar um pouco” (Parte 1,
pág. 38).
Merecem
menção as dificuldades de aplicação apresentadas com relação ao cristianismo: a
ausência de organizações esotéricas nos primeiros séculos da Igreja, a oposição
taxativa do Fundador, o caráter iniciático dos sacramentos. E sobre esta última
dificuldade, considerada a mais importante, o autor faz uma declaração que deve
reter nossa atenção: “Todos os cristãos que receberam os sacramentos são,
portanto, iniciados, no sentido estrito que o perenialismo dá a essa palavra.”
(parte 1, pág. 39).
O
autor questiona o porque dessa insistência de Guénon em fazer esta problemática
aplicação, “Mas antes mesmo de esclarecer esse ponto é preciso levantar uma
outra questão” (parte 1, pág. 41)
Trata-se da questão do que é a Metafísica, cujos princípios são o ponto,
inquestionável para o autor, de convergência das “tradições materialmente
diferentes”.
O
termo é usado como nos autores mais citados do artigo, Guénon e Schuon:
“Que
é uma metafísica? É a estrutura da realidade universal, que desce desde o Primeiro
Princípio infinito e eterno até os seus inúmeros reflexos no mundo manifestado,
através de uma série de níveis ou planos de existência” (parte 1, pág. 41)
Aí
encontramos unidade nas tradições, o que nos mostra “uma percepção normal da estrutura básica da realidade” (Idem, o itálico
é do autor), da parte de todos os homens. E esta estrutura é escalar, trata-se
de diferentes planos ou níveis de realidade, do sensível ao divino (Realidade
última). Tal metafísica é condição necessária da vida religiosa e da realização
espiritual. “Tudo isto está muito bem” (parte 1, pág. 42), concorda o autor,
que busca em seguida assinalar a dificuldade de que uma metafísica comum a
várias tradições seja a perfeição de cada uma delas. Não é possível, já que a perfeição
pertence à espécie não ao gênero. Para resolver a dificuldade, defende que:
“(...)
a Tradição Primordial é a base comum não só a todas as tradições espirituais,
mas a todas as culturas e, no fim das contas, ao núcleo de inteligência sã presente
em todos os seres humanos. Partindo dessa base, ou origem, as várias tradições
se desenvolvem em direções diferentes, cada uma procurando refletir mais
perfeitamente o Princípio absoluto e dar aos homens os meios de retornar a Ele.
Nesse sentido, a culminação não é o Princípio em si, mas o sucesso que obtém na
operação de retorno” (parte 1, pág. 43).
A
consequência é uma diferenciação de grau de sucesso entre as várias tradições,
pois elas representarão diferentemente a Tradição Primordial. Mas todas remetem
a ela, isto é “OK” para o autor.
Na
parte IV o autor volta a ocupar-se então da questão do esoterismo e exoterismo.
Falou-se na distinção vertical exoterismo-esoterismo em cada tradição religiosa,
Examina-se agora a possibilidade, em cada tradição, de filiar-se a alguma
organização esotérica. Novamente, não há problemas para o islamismo. Também o
hinduísmo, receptivo em relação a outras religiões, não oferece maiores
problemas. Mas o autor percebe grandes dificuldades quando se trata do
catolicismo. E aqui ele se opõe mais frontalmente ao projeto guenoniano.
Primeiro, mostrando o beco sem saída que seria para um católico aderir à
maçonaria, considerada por Guénon uma organização iniciática cristã: mas ela é
excomungada, assinala com razão o autor.
A
partir dos anos 60, perenialistas sugeriram 3 saídas: conversão ao islam, à
ortodoxia, e a terceira, considerada mais fácil e natural, entrada na tariqa
multiconfessional de Schuon. Esta última alternativa correspondia ao projeto de
Guénon.
E
na parte V o autor mostra as 3 respostas, reduzidas por ele a 2, que dá Guénon
para o desenrolar da crise de degradação espiritual do Ocidente: “ou o mergulho
na barbárie ou a sujeição ao islam, seja discreta ou ostensiva.” (parte 2, pág.
35).
Esta aplicação forçada do binômio exoterismo-esoterismo, e o diagnóstico
e soluções propostas para a crise da cristandade, leva o autor a discernir como
objetivo central da obra de Guénon, a islamização do Ocidente. O desprezo pela
política por parte de Guénon (que buscava a autoridade espiritual), e o impacto
de sua obra sobre seus discípulos, dificultou ou mesmo impediu que o público
discernisse essa intenção em Guénon. E o autor adverte contra esse projeto, mas
reafirma o valor dos ensinamentos de Guénon, como que aprovando o diagnóstico
da realidade, ainda que tendo reservas quanto ao remédio proposto.
2.
Crítica .
Procuramos
reproduzir com fidelidade o pensamento do autor, separando-o do pensamento dos
seus mestres, sobretudo Guénon e Schuon, aos quais ele segue, mas também quer
corrigir. O título do artigo, e sobretudo a segunda parte deste dá a impressão
de alguém que quer escapar às “garras da esfinge”. Mas vemos no final do mesmo
que a condição de escape é a decifração do enigma guenoniano, onde se separa
aquilo que é útil do que é danoso. É danoso o projeto de islamização do
Ocidente. Mas é proveitoso e fortalecedor, por exemplo, a tese da unidade
transcendente das tradições religiosas, bem como esta “metafísica” que nos eleva acima do sentimento religioso,
sendo indistintamente condição de vida e realização para todas as tradições
religiosas que, embora diferentes e atingindo um grau diferenciado de perfeição
(opinião própria do autor que parece ir de encontro ao “ecumenismo” dos
mestres), dependem todas de uma única tradição primordial, a cuja ligação devem
sua própria existência e, adendo do autor do artigo, seu próprio grau de
excelência.
Mas
todo esse edifício cai por terra quando nos damos conta de que não estamos,
principalmente, diante de um enigma que se tenta decifrar. Enigma há, mas o que
sobressai em todas essas descrições e raciocínios, é a sua radical oposição à
verdade revelada pelo Deus Único e confiada à sua Igreja. Pois a doutrina de
René Guénon não passa de uma perversão gnóstica do universalismo cristão
(catolicismo, etimologicamente, significa universalismo), que devemos rejeitar
em bloco sob pena de tornarmo-nos cúmplices da mesma perversão, e o artigo em
questão o mostra.
A
fim de pôr à luz esta perversão, a melhor maneira é a de contrapor a doutrina
perene da Igreja frente às elocubrações expostas. Da comparação se poderá
inferir incompatibilidades suficientes para nos fazer rejeitar tais posições,
sejam as mais radicais e tendenciosas de Guénon, sejam as mitigadas, mas também
mais insinuantes, do autor do artigo. Concentraremos nossa atenção em dois
temas principais: a chamada tradição primordial, considerada mãe de todas as
tradições, e essa metafísica que faria o homem superar-se a si próprio.
Tradição Primordial única?
Toda a teoria perenialista repousa sobre a unicidade da tradição
primordial. O autor, como citamos, a considera “(...) base comum não só a todas
as tradições espirituais, mas a todas as culturas(...)”. Ora, a verdade é que
houve, sim, uma tradição primordial única, mas esta se limitou à transmissão do
Criador a nossos primeiros pais. Logo interveio aquilo que não pode ser
ignorado por nenhum católico com um mínimo de conhecimento de sua fé: o pecado
original.
“Subitamente
abriram-se-lhes os olhos e ambos perceberam que estavam nus; por isso
entrelaçaram folhas de figueira e fizeram cinturões para si. Depois ouviram o
ruído do Senhor Deus que passeava pelo jardim, à brisa do dia; então Adão e sua
companheira esconderam-se da vista do Senhor Deus, entre as árvores do jardim.”
(Gen., III, 7-8).
Nossos pais já não eram os mesmos, e a humanidade que sairia deles já
não seria como o plano inicial do Bom Deus estabelecera. Pois fora rompido o laço
sobrenatural que os unia a Deus. Despojados no sobrenatural e feridos no
natural, como diz Santo Agostinho, impossível para eles e seus descendentes, em
conjunto, ser integralmente fiéis à transmissão primordial, cujo autor traíram
a confiança.
Felizmente, a misericórdia de Deus se manifestou naquele momento, e o
primeiro livro da Escritura, tão fundamental para o conhecimento de nossas
origens, narra aquela promessa que ficou conhecida como Proto-Evangelho:
“Porei
inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela; esta te
esmagará a cabeça enquanto tu te lanças contra o seu calcanhar.” (Gen., III,
15).
Eis
a humanidade dividida mesmo antes que se expanda fisicamente. E é vontade do
Criador, já que houve pecado. Toda a história humana será marcada por essa
inimizade sem conciliação possível. O Adversário assassinara a vida
sobrenatural do gênero humano, tendo antes enganado nossos pais com um falso
ensinamento que era uma falsa promessa:
“(...)
Não, não morrereis. Antes, Deus sabe que quando dele comerdes, abrir-se-ão os
vossos olhos e vos tornareis como Deus, conhecendo o bem e o mal.” (Gen., III,
4-5).”
O
homem cedeu à tentação, desobedecendo em vista de obter um conhecimento que
Deus reservara a Si. E o Tentador continuará a transmitir seus falsos
ensinamentos e promessas, e a congregar aqueles que se lhe vão aderir no correr
dos séculos. Uma tradição se constituirá, ostentando quase a mesma antiguidade
da verdadeira tradição e procurará superá-la continuamente, o que será em vão,
mas poderá dar a impressão de que a superou em períodos críticos da história.
Esta separação irreversível destrói a hipótese de uma tradição
primordial forjadora de tradições religiosas particulares. Durante a história
ver-se-á o embate entre 2 tradições,
uma divina, homogênea, progressiva até a revelação do Verbo Encarnado,
finalidade desta, e a outra humano-diabólica, que será heterogênea, parasita e,
muito importante, tendendo ao sincretismo. A maior vitória para esta última
seria o de integrar a verdadeira tradição no seu sistema, fazendo-a vassala de
suas concepções e ideais.
Já
no mesmo livro do Gênesis, no capítulo seguinte, essa separação se nos revela
de modo brutal no episódio do fratricídio de Abel: primeiro, se nos deparam dois
cultos (já não há unicidade!), e o respectivo agrado e desagrado de Deus por um
e outro. Já no começo a vontade de Deus é o critério, não a antiguidade, ambos
os cultos aparecem ao mesmo tempo, mas só um deles é bom[1].
Outro momento crítico da história onde essas
2 tradições se nos mostram contrárias é nos tempos do Dilúvio. Narra a
Escritura que:
“Deus olhou para a terra e viu que estava depravada, porque todo mortal
corrompera sua conduta sobre a terra.”(Gen., VI, 12).
Como resultado, Deus decretou a destruição quase completa da humanidade,
como modo de sanar a corrupção dominadora. O patriarca Noé aparece como um
representante quase isolado da verdadeira tradição no meio da corrupção
universal. A humanidade é assim renovada e a tradição divina, salva.
Outro episódio que merece nossa consideração é o da Torre de Babel. Foi
mais um momento onde a falsa tradição humano-diabólica prevaleceu sobre a
tradição divina, e com um agravante. Vejamos a Escritura:
“(...)
“Mãos à obra! Construamos uma cidade e uma torre cujo cimo chegue até ao céu, e
nos faremos um monumento, para não nos dispersarmos sobre a face de toda a
terra”. Desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens
haviam construído; e disse “Eis! São todos um só povo e uma só língua, e esta é
a primeira empresa que realizam; doravante não lhes será difícil fazer tudo o
que lhes vier à mente. Vamos! Desçamos e confundamos ali sua língua; de sorte
que não se entendam um ao outro” (Gen., XI, 4-7).
Os
homens estavam unidos, querem glorificar seu próprio nome e garantir sua união,
e sua construção comum, fruto dos seus esforços, deve atingir o céu. Não se
fala de Deus, trata-se de um empreendimento de uma humanidade associada, que
confia em suas próprias forças para atingir algo de sublime.
E
Deus os dispersou. Porque? Era um momento crítico em que a tradição heterogênea
não somente prevalecia sobre a divina, mas, e eis o agravante, tendia a se
unificar, o que aumentaria consideravelmente suas forças e a tornaria ainda
mais ameaçadora à tradição divina. A permissão divina para este terrível
fenômeno estava reservada para os últimos tempos, quando o Anticristo
arrematará seu poder unindo todas as suas forças contra a Igreja de Cristo.[2]
Tendo sido novamente salva, a tradição divina recebeu, séculos depois uma
nova e poderosa proteção quando Abraão foi chamado para ser princípio de um
novo povo que, este, seria o povo de Deus no meio das nações idólatras.
Estabelecia-se assim uma clara linha de demarcação entre a religião verdadeira
e a multidão de religiões falsas, sendo a primeira constituída herdeira
provisória da tradição divina, a qual deveria ali se fortalecer, em vista do futuro
cumprimento das promessas messiânicas.
A
Encarnação do Verbo, sua vida, morte e ressurreição, e a fundação da Igreja
Católica, marcam a plenitude da Revelação, clara e definitivamente demarcada da
variada mas improfícua proliferação de religiões antes ou depois desta. Pois
Nosso Senhor disse sem rodeios: “Aquele que não está comigo, está contra mim”.
Note-se que a Igreja não é só depositária da Revelação, mas também, por seu
Magistério tradicional, intérprete da mesma, o que inclui mesmo o poder, que de
fato exerceu, de determinar o Canon das Escrituras, discernindo assim, mesmo no
passado, o que é inspirado e isento de erros. De fato, nada lhe falta, sua
realidade mais profunda é a de continuar Jesus Cristo na terra. Só a malícia
dos seus membros que não correspondem à abundância de recursos sobrenaturais
postos à sua disposição, bem como a raiva de seus inimigos, podem fazê-la
parecer desfigurada, sobretudo numa época de apostasia como a nossa. Querer
inserí-la numa espécie de competição com outras religiões, cujo critério de
valor será o da conformidade com uma tradição primordial que lhe antecede e da
qual ela depende, assim como todas as outras religiões, eis um acinte que
deveria provocar a rejeição indignada de qualquer católico que conheça um pouco
a dignidade e singularidade de sua religião, e da Tradição que ela guarda.
“Metafísica” ou vida sobrenatural?
A
mesma tentativa de inserção redutora num conjunto mais amplo se observa com a
noção de metafísica.
Como dissemos, o autor afasta a possibilidade de tratar a metafísica
como disciplina acadêmica. Não é o caso daquele que estuda essa parte principal
da filosofia, chegando assim ao conhecimento racional da existência de Deus, de
seus atributos, etc., e com isto desfruta de
certa satisfação natural pelo conhecimento alcançado. Não, aqui se trata
de uma “estrutura da realidade universal" cuja percepção exige consciência
ou pressentimento dos diferentes níveis de realidade, indo do sensível até à
última Realidade, portanto ao divino. A isto a subjetividade humana deve perfeita
submissão, como condição “da vida religiosa e, mais ainda, da realização
espiritual” (parte 1, pág. 42).
Em
nenhum momento se fala de noções fundamentais como vida sobrenatural, graça
santificante, pecado, etc.. Mas o único conhecimento que supera o obtido pela
luz da razão é o que se obtêm pela Fé, virtude sobrenatural basilar “início,
fundamento e raiz da justificação”, como diz o Concílio de Trento. E esta virtude
recebemos com o batismo, que nos infunde a vida sobrenatural, a qual foi
perdida por nossos primeiros pais.
Novamente, a questão do pecado original é decisiva. Uma ruptura se
produziu nos primórdios, e daí em diante todos estavam dependentes da promessa
de um Redentor, que nos devolveria a graça santificante. E esta graça é uma
participação da vida divina. É muito mais que um conhecimento, e não pode ser
absolutamente conseguida por nosso esforço, nem mesmo pelo esforço de submissão
de nossa subjetividade, já que é de uma outra ordem. Sua concessão inicial no
Paraíso terrestre foi dom absolutamente gratuito. Sua reconquista no Calvário,
obra igualmente gratuita, mas também de uma incompreensível misericórdia. Sem
ela é impossível qualquer conhecimento que ultrapasse o conhecimento natural,
mais ainda é impossível qualquer “realização espiritual” genuína.
Se
nos voltamos para o mestre de Olavo de Carvalho, quando ele fala dessa
“metafísica”, sua descrição é altamente inquietante, mas também reveladora. Citemos,
por exemplo, alguns trechos de sua conferência sobre a metafísica oriental,
proferida em 1925 na Sorbonne. Diz ele entre outras coisas:
“(...)a metafísica pura, situando-se, por
essência, acima e além de todas as formas e todas as contingências, não é nem
oriental nem ocidental: é universal. Somente as formas exteriores — com as
quais ela se reveste para atender às necessidades de exposição, para exprimir o
quanto, nela, seja exprimível — somente tais formas é que podem ser orientais
ou ocidentais; mas, sob a diversidade delas, é um fundo idêntico que se
reencontra por toda a parte e sempre, ao menos, onde haja metafísica
verdadeira, e isto pela simples razão de que a Verdade é uma e única.”
“Tomaríamos, então, "metafísica" como sinônimo de
"sobrenatural"? Aceitaríamos de bom grado tal assimilação, de vez
que, enquanto não ultrapassamos a natureza, isto é, o mundo manifesto em toda a
sua extensão (e não apenas o mundo sensível, que não é, dele, senão um elemento
infinitesimal), estamos ainda no domínio da física; o que é metafísico, como
dissemos, é aquilo que está além e acima da natureza, é portanto, propriamente
o "sobrenatural".
Mas, sem dúvida, farão aqui uma objeção: será possível ultrapassar assim
a natureza? Não hesitaremos em responder de maneira bastante nítida: não
somente isso é possível, mas isso é.”
“Existe, aliás, com toda certeza, alguma coisa de incomunicável; ninguém
pode atingir realmente um conhecimento qualquer senão através de um esforço
estritamente pessoal, e tudo o que um outro pode fazer é mostrar-lhe a ocasião
e os meios de lá chegar. Eis porque, na ordem puramente intelectual, seria vão
pretender impor qualquer convicção; a melhor argumentação não poderia, no caso,
substituir o conhecimento direto e efetivo.”
“Agora: pode-se definir a metafísica, tal como a entendemos? Não, porque
definir é sempre limitar, e aquilo de que se trata é, em si, verdadeiramente e
absolutamente ilimitado, portanto não poderia deixar-se encerrar em nenhuma fórmula
e em nenhum sistema.”
Desnecessário
acrescentar mais. O citado permite com sobras concluir que estamos diante da
velha tentativa de alcançar o divino recusando a graça, ou ao menos
subordinando-a ao próprio esforço de conhecer. Tal “conhecimento”, que é
incomunicável, torna seu possessor um iniciado. É menos relevante discutir se
para os católicos seria útil ou necessário a submissão à guia islâmica, ou se
poderíamos encontrar nosso próprio caminho, inclusive nos valendo da “iniciação”
sacramental, recusada por Guénon, mas aceita por Schuon. Qualquer conluio com
esta gnose resultaria na perversão, não das outras religiões, cujo comércio com
o além não seria essencialmente alterado, mas da Religião do Verbo que se fez
carne “e habitou entre nós; e vimos a sua glória, glória própria do Unigênito
do Pai, cheio de graça e de verdade.” (Jo., I, 14).
Conclusão
Com
habilidade, o articulista passa a impressão de tradicional, descritivo e mesmo
reacionário à tentativa de subversão do cristianismo. Os que aderem às suas
idéias sofrerão o influxo do falso tradicionalismo de Guénon, mesmo que
“retificado” pelo discípulo que se tornou mestre. Ora, a principal correção diz
respeito à repulsa da influência islâmica, parecendo voltar-se para as próprias
reservas “tradicionais” do catolicismo (que teriam ligação com a suposta
tradição primordial única). Assim, a tendência deles poderá ser a de realizar,
através dos elementos católicos, interpretados à sua maneira, sua própria busca
de “realização espiritual”. E como muitos deles percebem, com razão, a desordem
reinante nos ambientes conciliares, poderão voltar-se para fontes mais puras,
vale dizer, tenderão a parasitar nossos ambientes, servindo-se de nossas
cerimônias e sacramentos. A possibilidade é real, se já não é triste realidade.
Cabe a nós defender a verdadeira Religião expondo integralmente a sua doutrina
e consequências, valendo-nos também dos estudos de quem já confrontou semelhante
problema, descobrindo seu caráter e estratégias. Refiro-me a estudos como os de
Epiphanius, J. Meinvielle. E. Couvert e Jean Vaquié, entre outros, nos quais em
grande parte baseamos nosso estudo. Tais trabalhos devem ser conhecidos entre
nossos fiéis, e sua leitura deveria ser obrigatória para alguns, sobretudo os
que se destinam ao sacerdócio.
“Sem
a graça de Deus atuante e acolhida obediencialmente, não apenas nas almas fiéis
que estarão em torno do altar até o fim do mundo, mas nas junturas e conexões
sociais; sem a presença da Igreja acolhida, aceita; sem as marcas de Cristo-Rei
na Cidade temporal, os homens não serão capazes de fazer “uma civilização” e
não conseguirão traçar um contraponto, sequer medíocre, de seu tropel coletivo
no mundo. Sim _ sem aqueles liames sobrenaturais _ os homens não conseguirão
traçar uma história medianamente humana, uma história ao menos decente. Ao contrário, conseguirão esse prodígio de
mistura em que os mais belos atos humanos se entremeiam e se comprometem com
uma organizada satanização.” (G. Corção, O Século do Nada, pág.316)
[1]
- Abel oferece as primícias de seu rebanho, realizando uma imolação, o que era
conveniente realizar depois do pecado, para tornar Deus propício. Enquanto que Caim
simplesmente oferece uma parte de sua produção agrícola, os “frutos da terra”,
o que mais denota simples ação de graças. A atitude revoltada e assassina deste
último mostra que não se tratava de alguém disposto a se humilhar diante do
Criador.
[2]
- No já clássico Maçonnerie et Sectes
Secrètes, de Epiphanius vemos, na pág. 418, um cartaz do Conselho Europeu,
onde se lê “Europa: Muitas línguas, uma voz”, e na ilustração a construção
moderna da Torre de Babel. Os mundialistas admitem assim serem os herdeiros
atuais da falsa tradição que quer unir a humanidade contra o Criador.